30 de novembro de 1999, São Paulo.
Acordo, inspiro, o péssimo odor que vem de um cara ao meu lado, me faz lembrar onde estou, nas ruas de São Paulo, também não estou cheiroso, provavelmente se o cara que está ao meu lado acordasse e eu ainda estivesse lá iria sentir um cheiro repugnante também, talvez até pior do que o dele.
Há dois anos moro na rua, perdi tudo por causa de vícios, principalmente por causa da cocaína, que me deixava ligado vinte e quatro horas por dia para que fosse capaz de realizar todas as minhas atividades diárias e ainda achar um tempo para tomar conta da minha família.
Antes de começar a pedir esmola na rua e ser diversas vezes humilhado pelas pessoas que estão ali ocupados com o trabalho e acham ridículo uma pessoa ter que ficar esmolando na rua principalmente no meu caso que não tenho problemas físicos e que posso muito bem correr atrás de algo melhor, mas não tenho mais força para isso.
Fui pisoteado pela pessoa que mais amava, minha esposa que agora já se casara de novo, me traía todos os dias sem ao menos pensar em mim, enquanto eu me multiplicava em mil para conseguir faze-la feliz e que não faltasse nada para ela ou minhas filhas, Anna Clara e Anna Laura, ambas com dois anos e maravilhosas.
Depois que descobri estar sendo um legítimo corno, fui conversar com minha esposa, para tentar resolver e perdoa-la mesmo sabendo do que acontecia, afinal eu a amava, mas de nada adiantava se só eu amava, ela não casara comigo por causa do amor, foi só por interesse.
Meu casamento acabou depois de alguns meses de brigas nas quais eu acabava me alterando a níveis imperdoáveis. No fim das contas acabei sem nada e preso por agredi-la.
Em dois anos tentei emprego em diversos lugares, mas ninguém queria dar emprego a um ex-drogado e presidiário, acabei tendo que pedir esmola para me sustentar, como não tinha família, era o único filho de meus falecidos pais e eles, ambos também filhos únicos. Mas algo teria de melhorar...
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19 de dezembro de 1999, São Paulo.
Todos os sábados e domingos ficava em um abrigo de ex-drogados, que também tinha um grupo de autoajuda. Nele apenas 10 pessoas compareciam normalmente, todos com histórias emocionantes, mas uma pessoa em especial, que agora não vivia mais nas ruas, mas mesmo assim comparecia assiduamente às reuniões, Vitoria, que mesmo sabendo do meu histórico todos os dias era gentil e amigável, ela fazia com que minha semana não fosse tão infeliz.
Vitoria era três anos mais nova que eu, sofrera com seu ex-marido o que eu sofri com minha ex-mulher, ela foi traída diversas vezes, e era agredida quase todos os dias muita das vezes por motivo algum, mesmo assim se recompôs e agora trabalhando de caixa em um supermercado meio período e fazia faculdade de educação física a noite.
Não sabia o quanto Vitoria estava sendo importante pra mim naquela época, até por que não sabia ainda ao certo o que estava acontecendo.
Tinha uma carreira brilhante e uma linda família, o que iria querer mais? Fiz essa pergunta uma vez para Vitoria e ela me deu a resposta que precisava... Viver!
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31 de dezembro de 1999, São Paulo.
Eu já estava animado com o papo de Viver e Vitoria me convidou para passar a ceia de ano novo na casa dela, no começo pensei em recusar por que não teria como levar nada, mas eu estava tão encantado com ela que aceitei, finalmente estava me esquecendo da minha antiga vida.
Naquele dia fiz pela última vez o que fazia há três anos, esmolar. As pessoas estavam caridosas nesse ano, consegui quase cinquenta reais em um dia, geralmente fazia isso em uma semana se a semana fosse boa.
Com o bolso cheio de notas e moedas fui até um brechó e comprei uma camisa e uma calça nova, que me custaram apenas vinte reais, fui até o supermercado onde Vitoria trabalhava e comprei uma cidra, a melhor que encontrei, me lembro ainda qual era a boa, mais dez reais, com isso sobraram-me dezenove reais e trinta e cinco centavos, enquanto estava indo para o abrigo por que ia tomar banho lá, no caminho vi uma loja e em cima do balcão vi uns anéis, sabia que não eram alianças, mas mesmo assim fui ver quantos custavam.
Cheguei na porta do estabelecimento e percebi que minha presença trouxe olhares negativos para a loja, por isso chamei um vendedor para que ele viesse até a porta e lhe perguntei quantos custavam os anéis e prontamente ele me disse que eram sete reais e cinquenta centavos cada um, pedi para ele me trazer um que coubesse no dedo da caixa que me parecia ter os dedos do mesmo tamanho de Vitoria e um que coubesse no meu.
Depois que comprei os anéis fui até o abrigo tomar um banho. Sai de lá eram quase oito horas. Estava arrumado e feliz, estava vivendo.
Chegando na casa de Vitoria, me espantei com a porta aberta, entrei sem ao menos bater, lá dentro gritos histéricos saiam da cozinha, fui correndo e encontrei o ex-marido dela bêbado, agredindo-a. Fui imediatamente tentar tira-lo de perto dela, mas ele pegou uma faca de cima da mesa e enfiou em meu estômago e saiu correndo dali, antes de desmaiar vi Vitoria me chacoalhando e ligando para a ambulância.
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31 de dezembro de 2000, São Paulo.
Um ano se passou depois do acontecido, o padre está já no altar, as pessoas ali presente cochichando sobre diversas coisas, o local está mórbido, todos se lembrando de algum acontecimento parecido, o atraso está fora do normal, os parentes e amigos que a cada momento cochichavam mais, normal em acontecimentos como estes, principalmente sabendo que já fazem um ano, os homens todos de ternos cinzas e as mulheres de vestido azul marinho.
De repente, a música começa a tocar, me viro, os convidados agora todos de pé, desordenados querendo ver um pouco ela que esta radiante, Estava com um vestido branco simples, foi o que conseguimos comprar, sua maquiagem, seu cabelo, só realçavam a beleza que ela já tinha ao natural...
A música começou a ficar mais alta, Vitoria começou a andar, o tapete vermelho com pétalas de rosa branca espalhadas por todo canto, ela olhava para mim enquanto andava, seu olhar brilhava, assim como o meu. Eu estava tremendo, não era como a primeira vez, esse seria para sempre, como dizem, até que a morte nos separem, quase separou, mas acho que não era minha hora.
Vitoria chegou ao meu lado se posicionou, o padre que agora começara a falar no fez perder o foco um no outro e começar a prestar mais atenção nele...
O momento mais feliz de minha vida talvez, estava me casando com a mulher certa desta vez...
— Senhor Leandro Ribeiro de Lima, aceita Vitoria Ingrid de Paiva como sua legítima esposa? — perguntou o padre pela segunda e última vez para mim.
—Sim, eu aceito! — disse.
—Senhorita Vitoria Ingrid de Paiva, aceita Leandro Ribeiro de Lima como seu legítimo esposo?
— Sim! Eu aceito! — respondeu Vitoria.
— E hoje com a benção do senhor Jesus Cristo, eu vos declaro, marido e mulher... Pode beijar a noiva...
E após um ano eu e Vitoria nos casamos e nos tornamos um e assim será até o fim...
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29 de outubro de 2015, São Paulo.
Hoje, quase quinze anos depois, Vivendo, me recordando de tudo e vendo tudo o que está acontecendo atualmente paro e penso que... O amor me fez viver!